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As mortes de Trillian Tenenbaum


~JuhZ

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Capítulo 04: Tricia Thunders e o Observador

_ Uma mulher movida à vingança – Jack riu baixinho.

_ É um bom combustível, – disse-lhe – podes ajudar-me?

_ Claro que posso, mas talvez eu não deva fazê-lo – ele encarou-me nos olhos. – O que fizeram a ti para que a meta de tua vida seja matá-los?

Olhei o nos olhos com firmeza, um sorriso um tanto sádico curvou-me os lábios:

_ Eles me mataram...

Eu nasci numa casa grande e bonita em Al De Baran, cercada do que havia de melhor, com meu pai e minha mãe. O grande clã dos Thunders via em mim apenas mais um de seus frutos, uma bela menininha de cabelos castanhos e olhos verdes que cresceria refinada e cheia de classe e algum dia casar-se-ia com um jovem herdeiro rico de algum outro clã poderoso da região. Os únicos que não concordavam com isto eram justamente meus pais. E eu.

O destino que meus avós queriam impor-me era o mesmo que um dia desejaram para minha mãe, porém ela se recusou e assim que completou doze anos fugiu de casa para tornar-se uma Aprendiz e, um dia, uma magnífica e bondosa Templária. Depois de tornar-se uma Espadachim ela voltou à casa de seus pais, mas, para eles, já era tarde: a noticia da fuga dela havia se espalhado e nenhum bom partido a desejava agora, então eles foram obrigados a aceitar.

Numa das idas e vindas de sua vida Samantha, minha mãe, conheceu Derick Battlestar, um orgulhoso Assassino que se encantou por ela à primeira vista. E foi correspondido. Alguns anos depois, Tricia Thunders veio ao mundo e foi tratada como uma pequena princesa pelos avós que queriam consertar o erro que fora a criação de Samantha. Entretanto pouco adiantou já que eu sempre fui avessa aos exageros da sociedade e sempre preferi correr pelo quintal com os filhos dos empregados do que encarar tediosas aulas de etiqueta com minha avó.

Quando eu completei doze anos fui a Prontera com meus pais e fui recebida na Academia de Aprendizes para um dia tornar-me uma guerreira que lutaria por paz e justiça em nome de Tristan.

_ E o que queres ser Tricia? – perguntou-me meu pai assim que me viu trajando a farda de Aprendiz – Podes ser uma Assassina rápida, leve e silenciosa como eu, ou uma Templária forte e justa como tua mãe.

_ Ainda não sei o que desejo pai – respondi-lhe com um sorriso incerto – mas sei que quando for hora eu descobrirei!

Eu treinei com a ajuda deles durante muitos dias, matando Porings, Poporings e Drops num lugar entre Prontera e Morroc. Um dia uma jovem Gatuna aproximou-se de nós e entregou uma carta a meu pai, o líder da Guilda dos Assassinos ordenava-lhe que se apresentasse diante dele em alguns dias. Derick pediu-nos que o deixássemos ir sozinho, porém Samantha convenceu-o a nos levar junto e então, três dias depois de a Gatuna entregar a carta a meu pai nós estávamos no meio do deserto rumando para Morroc.

_ Mamãe, estou cansada, e com muita sede.

_ Eu sei meu bem – ela entregou-me o cantil quase vazio. – Derick, vamos parar, Tricia não está sentindo-se bem, e está quase anoitecendo mesmo.

_ Por isso eu não queria que viessem – ele parou a contragosto e começou a armar o acampamento com a ajuda de minha mãe.

Estávamos comendo Condores assados à luz mediana da lua quando senti um arrepio na coluna:

_ Um círculo – murmurei.

_ O que foi querida – perguntou-me minha mãe.

_ Um círculo – respondi-lhe apontando para uma fina linha branca que se desenhava em torno do acampamento.

_ Magia! – exclamou meu pai erguendo-se de um salto, sacando as Katares e tentando sair do círculo a tempo

Minha mãe envolveu-me num manto e ordenou que eu ficasse escondida e partiu para enfrentar o Bruxo que nos atacava. Porém antes de eu poder me afastar uma pesada Nevasca caiu sobre mim prendendo-me num grande bloco de gelo do qual eu não conseguia me livrar.

Tudo o que eu vi desde então foi um pouco embaçado pela camada grossa de gelo que me cobria o rosto e também pelo frio que feria meus olhos.

Minha mãe sacou a Flamberge e empunhou o Escudo Espelhado, mas antes mesmo de ela aproximar-se do Bruxo um jovem Arruaceiro postou-se entre ela e o homem que agora tentava, em vão, conjurar Lanças de Fogo sobre meu pai.

_ O que desejam de nós? – perguntou-lhe minha mãe

_ Queremos suas cabeças, – respondeu o homem – o grande clã Thunders já causou muitos problemas para nossa... Associação em Al De Baran.

_ Associação – repetiu minha mãe.

_ Exatamente, é esta mania de vocês de interferirem em tudo: no comércio, na política e nem mesmo na Guarda Municipal nós podemos nos ver livres de vocês – o homem sacou um Rondel e maneou-o entre os dedos. – Não se pode lucrar com tanta gente chata no caminho, para o bem de nossos negócios, os frutos do clã Thunders precisam ser massacrados. O patriarca e a matriarca já descansam no outro mundo, está na hora de encontrá-los, herdeira.

Ele estreitou os olhos e partiu para atacar minha mãe, mas quando o Rondel aproximou-se ela ergueu alto o escudo refletiu o ataque do Arruaceiro, ele afastou-se alguns passos respirou fundo algumas vezes e voltou a atacá-la. Com um golpe certeiro ele atingiu as correias do escudo fazendo-o cair pesadamente no chão. Apesar de perder o escudo, o Rondel não causava muitos danos em minha mãe por que ela vestia uma Armadura Legionária muito pesada e resistente, porém com outro golpe ele soltou as juntas da armadura e ela tornou-se apenas um monte de placas frouxas de ferro que mais atrapalhavam do que ajudavam.

Mesmo estando então praticamente indefesa, minha mãe não desanimou, com grande perícia conseguiu atingir um Golpe Fulminante no Arruaceiro, que caiu semi-inconsciente no chão. Ela aproximou-se dele para desarmá-lo e poder amarrá-lo, ela sempre fora avessa a matar outras pessoas, porém ele estava bem desperto e assim que ela se aproximou o bastante ele arrancou-lhe o Elmo deixando-a com a cabeça desprotegida.

Foi então que um zunido cortou o ar, e eu sequer vi de onde veio a flecha que atravessou a testa de minha mãe, matando-a num segundo. Ela tombou lentamente, e quando já estava no chão o maldito Arruaceiro ousou chutar-lhe o corpo sem vida. Mesmo estando congelada consegui derramar lágrimas sofridas, tentei cerrar os punhos, mas estava sem sensibilidade nos dedos e minhas mãos ainda estavam presas no gelo.

Meu pai estava escondido, circulando o Bruxo fora do alcance da Chama Reveladora dele; depois de chutar minha mãe algumas vezes, o Arruaceiro escondeu-se também e então conseguiu empurrar meu pai para a Chama do Bruxo. Arruaceiros, Assassinos e até mesmo Gatunos habilidosos conseguem perceber a presença de pessoas escondidas ou quando alguém furta algo; depois de revelado pela magia do Bruxo meu pai ficou sem escapatória senão lutar.

_ Deixe-o comigo – disse o Arruaceiro, ele e meu pai cruzaram lâminas furiosamente e quando o Arruaceiro já estava bastante ferido ele tirou a Máscara Kitsune de meu pai antes de Recuar e esconder-se.

Novamente o zunido e meu pai também caiu morto no chão com o crânio trespassado por uma flecha.

_ Trabalho concluído – disse o Bruxo saindo das sombras assim que o Arruaceiro voltou a revelar-se.

_ Falta um – respondeu o homem girando o Rondel nas mãos.

_ Não falta mais – uma voz feminina fria e distante cortou a noite com outra flecha que atingiu e quebrou o bloco de gelo no qual que estava confinada. A Caçadora saiu de trás de nossa barraca e sorriu ao mirar uma última flecha em mim. – Adeus, garota – a flecha atingiu-me no coração e acho que ele não bateu nem uma única vez mais antes de eu morrer.

Depois de muito tempo eu despertei, estava deitava numa cama macia com o corpo dolorido e um grande curativo no peito. Com dificuldade levantei-me e procurei por alguém, encontrei então uma senhora idosa na sala olhando pela janela o pôr-do-sol.

_ Com licença – aproximei-me dela e ela sorriu ao ver-me – o que aconteceu? Onde estou?

_ Olá garotinha – a senhora levantou-se vagarosamente e foi até mim – que bom que estás sentindo-se bem o bastante para levantar-se.

_ Desculpe-me, eu a conheço? Não reconheço este lugar.

_ Sou Verônica Tenenbaum, muito prazer – ela sorriu. – Meu filho Alex achou-a desmaiada no deserto e a trouxe para cá para que eu cuidasse de ti.

_ Muito obrigada, senhora Verônica.

_ Como é teu nome, pequena?

_ Eu... – hesitei um momento – não consigo recordar-me.

_ É compreensível, passaste os últimos dois dias na cama febril e muito ferida – ela pousou a mão em meu ombro e guiou-me até a cozinha. – Deves comer algo agora, querida. Sente-se e espere um minuto que eu trarei algo para ti.

Verônica começou a cozinhar enquanto eu permaneci sentada, com muitas dores pelo corpo e sentindo uma fome sem tamanho. Logo depois de ela servir-me um prato de sopa de legumes eu ouvi alguém entrando na casa.

_ Mãe, estou de volta – Alex entrou na cozinha e estacou ao ver-me lá. – Acordaste então, que bom – ele sorriu e sentou-se ao meu lado.

Era um jovem muito bonito, vestia uma túnica cor de açafrão e uma armadura de bronze; era um soldado da Guarda Municipal de Morroc.

_ Muito prazer, sou Alexander Tenenbaum – sorriu-me com simpatia e aceitou o prato que a mãe lhe serviu. – E tu, como te chamas?

_ Eu não me recordo – baixei o rosto, envergonhada.

_ Tudo bem, deve ser efeito da insolação...

Jantamos em silêncio, Verônica foi deitar-se logo depois de comermos; Alex e eu cuidamos da louça e depois eu fui tomar banho. Quando tirei o curativo vi uma cicatriz em forma de asterisco em meu peito, sobre o coração e senti, no fundo da alma, a necessidade de alistar-me como Gatuna. Enquanto lavava-me tentava com todas as forças lembrar-me do que havia acontecido, sentia-me triste e solitária, mas não sabia o porquê. Quando saí do banho havia outro soldado da Guarda conversando com Alex na sala.

_ Esta é a garota de que me falaste Alex? – perguntou o homem para Alex

_ Sim, Rick, é ela.

_ Muito prazer, senhorita – o homem apresentou-se – sou Richard Goldcoin, muito prazer.

_ O prazer é meu – olhei-o envergonhada – sinto não poder apresentar-me, pois não sei meu nome.

_ Esqueceste teu nome – Richard pareceu espantado. – É uma tristeza, senhorita, mas há de lembrá-lo em breve. Entretanto, eu vim aqui para conversar contigo, Alex: um casal foi encontrado morto há algumas horas no deserto e não muito longe daqui. Parece que estão lá há alguns dias já.

_ Um casal morto – repetiu Alex – por monstros, ou alguma doença do deserto?

_ Só se uma flecha trespassando-lhes a cabeça for uma doença do deserto.

_ Assassinados! Há quanto tempo não víamos disso aqui, não?

_ Sim... – Richard suspirou – mas isto me parece algo planejado e não uma desavença entre dois grupos de aventureiros que resultou em briga, acho que temos um problema.

Os dois baixaram o rosto com expressão pensativa, então Richard olhou-me com certo interesse e perguntou:

_ Há quanto tempo ela está aqui, Alex?

_ Eu a encontrei há dois dias, mais ou menos, rondando sozinha pelo deserto – ele encarou o colega. – Achas que são os pais dela?

_ Podemos tentar, senhorita, por favor, vista um casaco e venha conosco.

Alex deu-me um casaco muito grande para mim e então eu segui junto deles para a Guarda Municipal. Seguimos até uma sala refrigerada nos fundos da Guarda onde havia uma mesa de pedra fria com dois corpos cobertos com lençóis negros. Richard avançou para a mesa e puxou os lençóis num único movimento. Meu único movimento foi cair de joelhos.

_ Tri... cia Thun... ders...

_ O que? – Alex olhou-me preocupado

_ Meu nome: Tricia Thunders – lágrimas pesadas corriam pelo meu rosto.

_ São teus pais? – perguntou-me Richard

_ Sim, Samantha Thunders e Derick Battlestar – disse-lhes – meus pais.

_ Como isto aconteceu – Richard havia se ajoelhado e olhava-me nos olhos – como eles morreram?

_ Não me lembro – minha visão estava turva de lágrimas, Alex se abaixou e me abraçou fortemente – não sei, eles... morreram e, eu não sei como – apertava a cicatriz no peito com força.

_ Há dois dias recebemos uma mensagem da Guarda de Al De Baran dizendo que Alizza e Renan Thunders haviam sido assassinados.

_ São meus avós – murmurei com a voz abafada pelo ombro de Alex que ainda me apertava em seus braços.

_ Sabe o que isto me parece – perguntou Richard – extermínio!

_ Tens razão... – Alex afastou-me um pouco de si e perguntou-me – Sabes de alguém que tenha desavenças profundas com tua família?

_ Não sei ao certo – funguei e limpei os olhos o melhor que pude – mas lembro-me vagamente de uma Associação de Al De Baran, ou algo assim.

_ Associação, deve ser alguma máfia regional – murmurou Richard. – Tricia, acredito que quem quer que tenha matado teus pais, acha que tu estás morta também. E para tua segurança devem continuar a achar isto, sugiro que mudes de nome e talvez um pouco tua aparência também.

_ Concordo com ele, Tricia, será bem mais seguro para ti que deixes de ser Tricia Thunders e passe a ser outra pessoa.

_ Mas quem eu seria?

Um longo silêncio abateu-se sobre nós, não conseguia erguer os olhos e ver meus pais mortos, sentia-me vazia por dentro e a única coisa que eu sabia ser verdadeira era a vontade que vinha do fundo de minha alma de tornar-me uma Gatuna, mesmo sem saber por quê.

_ Trillian Tenenbaum – disse Alex depois de um longo tempo.

_ Como?

_ A partir de hoje, tu te chamarás Trillian Tenenbaum – ele olhou-me longamente e sorriu por fim. – Quando eu era pequeno minha prima Trillian vinha visitar-me sempre, mas um dia estávamos brincando fora dos muros da cidade e um Lobo do Deserto apareceu e a atacou. Mesmo com muitos cuidados médicos ela faleceu. Tu és muito parecida com ela, Tricia, mas ela tinha cabelos verdes curtos.

_ Então tenho que pintá-los – ele piscou com força e depois sorriu novamente.

Richard, que havia anotado tudo, disse que eu deveria comparecer à Guarda no dia seguinte para pegar minha nova ficha de civil, com meu novo nome e recheada de informações falsas sobre mim.

Alex que eu chegamos em casa tarde, não dissemos palavra durante o caminho inteiro, mas quando eu estava adentrando o quarto que haviam me dado ele pousou a mão em meu ombro e agradeceu-me por aceitar o nome e a estória novos para minha vida. No dia seguinte, logo de manhã cedo, ele acordou-me com o café da manhã em uma bandeja e um sorriso no rosto.

_ Não precisavas fazer isto – censurei-lhe enquanto comíamos.

_ Eu queria fazer isto – respondeu-me ele – é o mínimo que poderia fazer-te hoje.

Verônica estava a par do que havia acontecido na noite anterior, abraçou-me longamente quando me encontrou, disse que sentia muito e que eu poderia ficar tranqüila, pois estava em casa. Ela saiu para visitar algumas amigas, Alex e eu ficamos em casa mais algum tempo e depois fomos ao centro da cidade para comprar algumas roupas e outras coisas para mim.

_ Quando eu a encontrei, tu vestia uma indumentária de Aprendiz – disse Alex – pretende tornar-se uma guerreira?

_ Sim, vou ser uma Gatuna.

_ E depois?

_ Não sei ainda – olhei-o e sorri – mas quando for a hora eu descobrirei.

Depois do meio dia voltamos para casa, com algumas sacolas de compras e muita fome. Preparei o almoço enquanto Alex tomava banho, almoçamos juntos e depois começamos a transformar-me em Trillian Tenenbaum. Fomos à varanda onde ele colocou uma cadeira na qual eu me sentei. Amarramos um lençol velho ao redor de meu pescoço e então ele começou a pintar meus cabelos de verde, iguais aos cabelos da verdadeira Trillian Tenenbaum. A tintura exalava um cheiro forte e enjoativo, eu tinha que segurar as mechas para cima enquanto ele passava a pasta nas raízes. A tinta fazia a pele arder e coçar muito e eu tive que ficar quase uma hora com ela nos cabelos.

Depois desse tempo Alex trouxe uma grande bacia cheia d´água onde eu pude tirar a tinta do cabelo, depois de limpos bastaram alguns minutos sob o sol de Morroc para que eles secassem.

_ Então – perguntei a ele quando meu cabelo terminou de secar – estou parecida com tua prima?

_ Muito – ele sorriu – sente-se aqui agora para eu poder cortar teu cabelo um pouco.

Sentei-me novamente na cadeira e ele cortou-me o cabelo do mesmo jeito que Trillian cortava, ao fim da operação eu não me reconheceria se passasse por mim de relance e ficamos orgulhosos disso. Depois fomos à Guarda onde Richard providenciou-me a nova ficha de civil e outros documentos que eu admito ter perdido algum tempo depois.

Vivi com Alex e Verônica durante cerca de dois anos, até Alex ser convocado para a Guarda de Payon. No dia em que me tornei Gatuna foi ao lado deles que comemorei, e foi também junto dele que eu assinei meu primeiro carimbo de uma Guarda Municipal em minha ficha de civil. Senti como se tivesse perdido minha família novamente naquele dia cinzento no qual eles foram embora, e por algum motivo qualquer nunca mais nos falamos. Na vez em que fui a Payon julguei ver Alex de relance, com a túnica verde e armadura de prata da Guarda de Payon, mas não fui atrás dele.

Depois de eles saírem de Morroc, morei alguns tempos por lá, depois fui à Al De Baran onde treinei na Fábrica de Brinquedos e onde quase morri congelada no caminho para Lutie. Morei algum tempo em Izlude e alguns meses em Alberta, porém era em Morroc que eu me sentia viva. Onde eu sabia que minha farda de Gatuna era respeitada e temida e sabia, pelos meus pesadelos, que era lá que eu devia ficar, pois era onde eu me sentia próxima aos meus pais.

Entretanto, devo ressaltar que, naquele tempo, eu ainda não me lembrava de como meus pais e eu havíamos morrido, o trauma da morte ainda bloqueava a lembrança tal qual ela é, o que eu via à noite era uma confusão de imagens e gritos que chegavam a mim através de uma grossa camada de gelo. Foi numa de minhas estadias em Morroc que eu conheci Anji e Juhz e me tornei amiga delas, e por causa disso o destino pôs à minha frente aquele Arruaceiro que trouxe a lembrança de minha morte de volta.

_ Quanta ironia... – os lábios de Jack curvaram-se num sorriso maldoso – queres matar aqueles que te mataram.

_ Parece-me bastante lógico – disse-lhe Juhz. – Tu também deves nutrir raiva daqueles que te mataram.

_ Minhas mortes foram causadas por mim mesmo, senhorita Juhz.

_ Como assim?

_ O que tu faria se teu melhor amigo permanecesse um jovem quando todos à tua volta já estão curvados sob o peso dos anos? – ele a encarou longamente – Não se pode ser imortal, minha cara, sempre que eu sentia que estava longevo de mais, forjava minha morte a fim de poder iniciar outra existência em outro lugar.

_ Tens razão – murmurou Juhz, baixando os olhos. – Mas como alguém tão cheio de vida aceitou vir para este santuário de onde não pode tirar os pés?

_ Era meu destino vir para cá – ele suspirou – quando eu era jovem, ainda na minha primeira vida, eu estava treinando neste lugar quando Odin trouxe este Tabuleiro para cá.

_ Viste o senhor dos deuses com teus próprios olhos! – exclamou Juhz

_ Vi, ele falou comigo, tocou-me e me mostrou meu destino.

Ele era um Sábio, inteligente e forte, mestre de um Clã em franca expansão, dono de algumas terras onde se plantava cevada e herdeiro de muito dinheiro. Gostava do calor de Magma e por isso treinava diariamente lá, e nunca se feria muito, mas um dia algo saiu errado.

Por descuido, acidente, ou obra do destino; uma grande coluna de pedra ruiu com o impacto de uma das magias invocadas por ele, e caiu sobre seu corpo, ferindo-o mortalmente. Ele teria morrido, se isto lhe fosse possível. Com toda a força que conseguiu reunir naquele momento ele arrastou-se para dentro de uma fenda nas paredes de pedra e ficou estirado sobre o chão quente até sentir sua consciência esvair-se de sua mente. Quando acordou, logo teve vontade de voltar a desmaiar, pois estava sendo firmemente encarado por um poderoso par de olhos. Olhos de Odin.

_ Quem és tu, humano? – perguntou-lhe em voz retumbante o senhor de Asgard

_ S... ou Jack Sevenfold, meu senhor – respondeu o homem, apavorado.

_ E de onde tu vens?

_ De Juno, meu senhor.

_ Porque mentes para mim, humano? – Odin ergueu-o pelas golas chamuscadas de sua capa de Sábio – Deverias ter a decência de revelar-me tua ascendência, não o reconheço como uma de minhas peças.

_ Não estou lhe mentindo, meu senhor, como toda minha família, sou nascido em Juno.

O grande deus o encarou longos minutos e colocou-o no chão novamente.

_ Olhando em teus olhos, eu posso ver que falas a verdade, porém eu não entendo como podes viver sem estar em meu Tabuleiro – Odin fitou as paredes do lugar longamente. – Vejo no fundo de tua alma que morreste há pouco tempo: quando se morre uma marca fica no fundo da íris e eu vejo que não faz muito tempo tu deveria ter sido levado pelas Valkyrias.

_ Não entendo, meu senhor.

_ Talvez uma oportuna dobra da manta do destino tenha te trazido aqui hoje, humano – disse o deus. – Vejo que tua alma é completa, e isto significa que ela tem uma natureza peculiar, podes dizer por quê?

_ Não sei responder-te, meu senhor.

_ Quando nasceste, algo especial aconteceu?

_ Quando nasci... – o homem pensou um pouco – Minha mãe faleceu ao dar-me à luz – respondeu por fim – seria isto algo especial?

_ Precisamente – o senhor dos deuses encarou o Sábio novamente, e ele encolheu-se sob seu olhar. – Fica ao meu lado agora e escuta com atenção, porque eu não hei de repetir uma só palavra.

O homem ergueu o rosto e postou-se ao lado do deus. Odin tomou-lhe uma das mãos nas suas e tirou-lhe um fio de sangue apenas com o olhar, um gemido morreu nos lábios do Sábio. Odin esfregou o sangue do homem no chão e em seguida jogou uma gota de seu próprio sangue divino, então algo semelhante a uma semente surgiu. O deus esmagou-a sob seus poderosos pés e ouviu-se um estalo.

Quando ele se afastou começou a brotar uma nascente de elunium que cresceu até formar uma pequena plataforma, sobre a plataforma formaram-se montes de zargônio e garleta que aos poucos tomaram a forma das construções e monstros de toda Midgard e pequenas pessoinhas de oridecon e emperium surgiram nas ruas e dentro das construções de garleta.

_ Este é teu Tabuleiro! – anunciou Odin ao humano – Há alguns anos a tarefa divina de observar a humanidade tornou-se algo quase insuportável, então sob meu comando os deuses criaram o Tabuleiro Mestre, onde podíamos ver toda a humanidade sem maiores complicações. Antes disso tínhamos que descer à terra para cuidar de vocês. Naquele tempo classificávamos a humanidade como os de alma natural e os de alma primordial, ou seja, aqueles que tinham nascido sob circunstâncias normais e aqueles que tiveram um nascimento que influenciou a formação da alma, deixando-a muito mais forte e pura. Achávamos que toda a humanidade estava em nossos Tabuleiros, mas agora vejo que quem tem alma primordial não está. Isto lhes confere uma espécie de imortalidade, que é o preço por serem invisíveis. Não olhamos mais para o mundo em si mesmo e sim o observamos por meio dos Tabuleiros e, por não estarem presentes neles, os que são como tu são invisíveis aos nossos olhos. Antes, quando alguém de alma primordial morria, as Valkyrias viam e o buscavam, mas como aconteceu a ti antes de minha chegada: morreste e não foste carregado ao Valhalla, elas não viram tua morte. Compreendes?

_ Sim, meu senhor – os olhos do homem exibiam um misto de prazer e medo.

_ A partir de hoje, tu será o Observador deste Tabuleiro, não sairás daqui até que teu herdeiro surja.

_ Meu herdeiro?

_ Sim, tu ficará ilhado neste salão para toda a eternidade, um dia hás de te cansar e quererá morrer e então teu herdeiro virá para tomar teu lugar aqui.

_ Não poderei mais sair deste salão!?

_ Não, serás um guia para os que são como tu – respondeu o grande deus – garantirei que aqueles que têm alma primordial saibam deste lugar e venham a ti para orientar-se.

_ Mas, meu senhor, como poderei ficar aqui para sempre? Tenho uma vida a viver.

_ Tens uma existência a cumprir, e são coisas diferentes. Este é teu Tabuleiro e deves cuidar dele, se quiseres saia daqui agora mesmo e não olhe para trás e tu poderá viver lá fora. Mas teu destino foi traçado assim que me encontraste neste salão, voltarás para cá assim que for momento e então não sairás mais.

_ É este meu destino?

_ É o destino que eu lhe imponho agora – o senhor de Asgard arrancou a frente das roupas chamuscadas do homem com um simples movimento e cravou-lhe a mão palmada no peito deixando uma marca em forma de olho na pele clara.

Ao terminar de marcá-lo Odin deixou que ele corresse com todo o ímpeto para longe daquele lugar, o Olho em seu peito o ligaria ao Tabuleiro até o dia em que ele passaria aquela tarefa a outro imortal.

O Tabuleiro estava terminando de criar vida quando Odin terminou de gravar nas paredes as runas que prenderiam Jack naquele salão quando fosse o momento. Depois de terminar de criar o Salão o grande senhor dos deuses retornou a Asgard e contou aos seus subordinados sobre a peculiaridade dos humanos que possuíam alma primordial. Apesar de um tanto embasbacados, os deuses não se deixaram preocupar pelo fato. Escreveram então uma lenda para guiar os imortais ao Tabuleiro para que descobrissem a verdade sobre si mesmos e plantaram-na na mente de um escritor que a transcreveu e publicou. Assim eles voltaram sua atenção ao Tabuleiro Mestre e voltaram às apostas...

O Sábio Jack Sevenfold correu tanto quanto pôde, até estar bem longe do Salão, em seu peito uma marca em forma de olho queimava e reluzia e em seu coração brilhava o medo e o júbilo. Ele era um imortal, mas estava fadado a um destino que o próprio Odin dissera que o levaria a querer morrer.

Então ele viveu quatro vezes, e em cada nova vida mais pronunciada e dolorida tornava-se a marca em seu peito. Chegou então o momento em que aquilo o consumia a ponto de ele perder a vontade de viver, assim ele se despediu de sua quarta esposa e de sua quarta vida e voltou à Caverna de Magma em Juno, onde Odin o esperava.

_ Sabias até quando eu voltaria, meu senhor? – perguntou ao deus

_ Senti que o Olho aproximava-se do Tabuleiro e vim para recebê-lo.

_ Sinto-me honrado, meu senhor.

_ Vim para dizer-lhe que um dia teu herdeiro virá tu saberás quem será, pois na noite em que ele nascer teu Olho o verá e então ele aparecerá em teus sonhos – o grande deus o olhava fixamente. – Quando for o momento ele virá a ti, então não deves preocupar-se com isso; ele virá e receberá o Olho quando viver ultrapassar a barreira do insuportável para ti. Então ele deverá sacrificar-te com isto – ele entregou a Faca Inversa ao Observador – com esta Faca tua alma será reduzida a nada, não irás para o Valhalla ou para Niffleheim, apenas deixarás de existir como se jamais tiveste posto os pés nesta terra.

Ele segurou a Faca com as duas mãos, o Olho ardeu com mais intensidade quando ele tocou o cabo de metal brilhante.

_ As inscrições nas paredes impedir-te-ão de sair daqui, elas prendem o portador do Olho neste Salão; teu herdeiro ficará preso aqui quando recebê-lo de ti, mas ele só aceitará o novo hospedeiro se ele o aceitar, então não poderás prender alguém aqui na ignorância da verdade, estás de acordo?

_ Perfeitamente, meu senhor.

_ Este Tabuleiro foi criado com teu sangue, é como uma parte de ti; deves observá-lo e cuidar da vida neste plano. Hás de guiar os imortais que vierem a ti e os mortais que precisarem de teu auxilio também.

_ Estou pronto para servir quem vier a mim, meu senhor – Jack encheu o peito e soltou o ar aos poucos. – O Observador está em seu posto.

_ E assim ficará até o fim de tua imortalidade – disse Odin, o grande deus então retornou a Asgard e deixou o homem no Salão onde ele permaneceu intocado pelos anos, observando o contínuo fluxo do tempo. Muitas pessoas foram até ele, e ele simpatizou com várias delas, mas por mais que desejasse tê-las ali de novo, as runas impediam que os mortais entrassem duas vezes no Salão e os imortais nunca voltavam por vontade própria.

Diversas vezes ele esfaqueou-se com a Faca Inversa sem nunca morrer e diversas vezes ele perdeu a esperança do nascimento de seu herdeiro; mas um dia uma mulher de cabelos muito negros apareceu num sonho e deu à luz uma menina morena de olhos verdes que passou a visitá-lo constantemente em seus sonhos.

Mais de oitocentos anos haviam se passado desde que ele se tornara Observador, mais de mil anos depois de ele ter nascido; veio ao mundo Tricia Thunders e dezessete anos depois de ele a ver pela primeira vez ela foi visitá-lo no Salão e descobriu a verdade sobre si mesma e conheceu o destino que lhe era reservado.

_ Mas então, irás ajudá-la? – perguntou Juhz a Jack

_ Sim, podes dizer-me os nomes de teus assassinos, Tricia?

Hesitei um momento "eu não sei seus nomes" – respondi-lhe.

_ Isso dificulta muito as coisas – Jack suspirou, foi até o trono de prata e sentou-se majestosamente nele – mas não há de torná-las impossíveis. Venha aqui, Tricia.

Fui até o trono e pousei minha mão sobre a mão palmada dele, ele a apertou com força e sacou a Faca Inversa da bainha. Engoli em seco, mas ele apenas fez um pequeno corte para tirar-me um fio de sangue. Ele sorriu com doçura e levou minha mão até seu rosto, fechou os olhos e limpou o sangue sobre as pálpebras cerradas.

Permaneceu um minuto com os olhos fechados, quando os abriu não eram os tristes olhos azuis quase pretos e sim profundos olhos verdes, exatamente iguais aos meus. Ele olhou-me nos olhos e uma força incontrolável manteve meu olhar preso no dele, seu corpo sentado no trono sofria alguns espasmos e um suor frio descia-lhe pelo rosto.

Então uma força igualmente potente expulsou-me de perto dele, cai alguns metros adiante e Juhz amparou-me prontamente evitando que eu batesse a cabeça no chão.

_ O que aconteceu? – perguntou-lhe Juhz, assustada

_ Eu entrei na lembrança dela – cambaleante, ele levantou-se e respirou fundo antes de aproximar-se do Tabuleiro – como ela não pode informar-me os nomes de seus assassinos, terei de buscá-los pelas feições...

Sentei-me no chão com a cabeça latejando, Juhz foi até o Tabuleiro observar o que Jack estava fazendo, ela anotava tudo numa caderneta. Ele pousou a mão sobre a elunium que compunha a base do Tabuleiro e então, uma por uma, todas as pequenas pessoinhas reluziram. Quando uma peça brilhava, ele via quem exatamente esta pessoa era, e ficou muitos minutos parado, com a mão tremendo sobre a elunium até se afastar com um sorriso trêmulo.

_ Daniel Ookami – murmurou ele, respirando com dificuldade caminhando até onde eu estava – este é o nome do Bruxo que emboscou a ti e teus pais.

_ Daniel Ookami – repeti sentindo o ódio impregnando aquele nome – e o Arruaceiro, ou a Caçadora?

_ Achar uma pessoa pessoalmente é muito, muito cansativo minha cara – ele pousou delicadamente a mão em meu rosto. – Preciso muito descançar antes de procurar pelos outros, peço-lhe um pouco de compreensão.

_ Eu compreendo, é claro – afastei a mão dele do meu rosto e segurei-a firme entre as minhas. – Podes descançar à vontade, apenas me informe onde posso encontrar Daniel Ookami.

_ Ele vive em Al De Baran, dá aulas de magia a jovens Magos em sua casa – ele parou um momento – deves perguntar por ele no centro da cidade.

_ Muito obrigada, Jack – levantei-me de um salto e o acompanhei até sua câmara atrás da reentrância do trono, onde havia uma cama de dossel com lençóis muito brancos. – Nem sei como agradecê-lo por isso.

_ Cumpre tua sina e volta para mim depois e eu já estarei satisfeito – respondeu-me ele tirando o pesado manto negro que usava e indo dentar-se na cama de lençóis brancos.

Voltei para perto do Tabuleiro e encontrei Juhz ainda fascinada pelo artefato, quando percebeu minha aproximação ela olhou-me com olhos tristes.

_ O que houve – perguntei-lhe – achei que estavas feliz por estar aqui.

_ Estou, Trill... Tricia – respondeu-me ela – mas é que tudo foi muito confuso; eu tinha muita fé de este lugar ser verdadeiro, mas agora que estou aqui sinto falta de algo...

_ Podes chamar-me de Tril, Juhz – aproximei-me dela e tomei suas mãos nas minhas com força – ainda sou Trillian Tenenbaum, sou desde que Alex transformou-me nela, e de qualquer forma é apenas um nome, ainda sou a mesma pessoa.

_ Eu sei, Tril – ela baixou os olhos – mas, antes você era uma pessoa normal, agora eu sei que és uma imortal, uma... vingadora, não sei o que pensar.

_ Não precisas mudar teus pensamentos a meu respeito, já lhe disse: sou a mesma pessoa!

_ Tens certeza?

_ Mais do que absoluta – ela sorriu-me e soltou minhas mãos. – Mas acho que não é apenas isso...

_ Meu pai – disse-me então com voz embargada – sinto que ele deveria estar aqui.

_ Porque não vais atrás dele?

_ Ir atrás dele? Mas eu não sei onde ele está.

_ Mas ele – apontei o Tabuleiro – sabe.

Ela fixou o olhar no Tabuleiro durante alguns segundos, depois me olhou temerosa.

_ Jack foi descançar, como poderíamos usar isto sem ele?

_ Eu não sei... – respondi-lhe – mas eu sou a herdeira dele, isto deve obedecer-me também.

_ Não Tril – estendi a mão para tocar o Tabuleiro no ponto em que Jack o havia tocado para achar Daniel Ookami, mas Juhz segurou-me o pulso antes de eu tocar a elunium do grande mapa vivo à nossa frente – aquele que não é o Observador não pode tocar o Tabuleiro, nem mesmo o herdeiro. Tu podes morrer!

_ Juhz, sou imortal...

_ Este Tabuleiro é criação de Odin, acredite-me, ele pode matá-la...

_ Então não há nada que possamos fazer – bocejei e estiquei os braços estalando os ossos da coluna – talvez devêssemos descançar um pouco também...

Juhz concordou com a cabeça e deitamo-nos juntas no chão quente do Salão, permaneci longos minutos fitando o teto antes de pegar no sono. Então eu sonhei: a imagem de Daniel Ookami rindo-se de mim diante de meus olhos, apertei a mão com força, a ponto de tirar-me um pouco de sangue.

_ Hás de pagar pelo que me fizeste – murmurei em meio ao sono.

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Novo capítulo...

último pré-aulas ;-;

 

hope you enjoy

Capítulo 04: Tricia Thunders e o Observador

_ Uma mulher movida à vingança – Jack riu baixinho.

_ É um bom combustível, – disse-lhe – podes ajudar-me?

_ Claro que posso, mas talvez eu não deva fazê-lo – ele encarou-me nos olhos. – O que fizeram a ti para que a meta de tua vida seja matá-los?

Olhei o nos olhos com firmeza, um sorriso um tanto sádico curvou-me os lábios:

_ Eles me mataram...

Eu nasci numa casa grande e bonita em Al De Baran, cercada do que havia de melhor, com meu pai e minha mãe. O grande clã dos Thunders via em mim apenas mais um de seus frutos, uma bela menininha de cabelos castanhos e olhos verdes que cresceria refinada e cheia de classe e algum dia casar-se-ia com um jovem herdeiro rico de algum outro clã poderoso da região. Os únicos que não concordavam com isto eram justamente meus pais. E eu.

O destino que meus avós queriam impor-me era o mesmo que um dia desejaram para minha mãe, porém ela se recusou e assim que completou doze anos fugiu de casa para tornar-se uma Aprendiz e, um dia, uma magnífica e bondosa Templária. Depois de tornar-se uma Espadachim ela voltou à casa de seus pais, mas, para eles, já era tarde: a noticia da fuga dela havia se espalhado e nenhum bom partido a desejava agora, então eles foram obrigados a aceitar.

Numa das idas e vindas de sua vida Samantha, minha mãe, conheceu Derick Battlestar, um orgulhoso Assassino que se encantou por ela à primeira vista. E foi correspondido. Alguns anos depois, Tricia Thunders veio ao mundo e foi tratada como uma pequena princesa pelos avós que queriam consertar o erro que fora a criação de Samantha. Entretanto pouco adiantou já que eu sempre fui avessa aos exageros da sociedade e sempre preferi correr pelo quintal com os filhos dos empregados do que encarar tediosas aulas de etiqueta com minha avó.

Quando eu completei doze anos fui a Prontera com meus pais e fui recebida na Academia de Aprendizes para um dia tornar-me uma guerreira que lutaria por paz e justiça em nome de Tristan.

_ E o que queres ser Tricia? – perguntou-me meu pai assim que me viu trajando a farda de Aprendiz – Podes ser uma Assassina rápida, leve e silenciosa como eu, ou uma Templária forte e justa como tua mãe.

_ Ainda não sei o que desejo pai – respondi-lhe com um sorriso incerto – mas sei que quando for hora eu descobrirei!

Eu treinei com a ajuda deles durante muitos dias, matando Porings, Poporings e Drops num lugar entre Prontera e Morroc. Um dia uma jovem Gatuna aproximou-se de nós e entregou uma carta a meu pai, o líder da Guilda dos Assassinos ordenava-lhe que se apresentasse diante dele em alguns dias. Derick pediu-nos que o deixássemos ir sozinho, porém Samantha convenceu-o a nos levar junto e então, três dias depois de a Gatuna entregar a carta a meu pai nós estávamos no meio do deserto rumando para Morroc.

_ Mamãe, estou cansada, e com muita sede.

_ Eu sei meu bem – ela entregou-me o cantil quase vazio. – Derick, vamos parar, Tricia não está sentindo-se bem, e está quase anoitecendo mesmo.

_ Por isso eu não queria que viessem – ele parou a contragosto e começou a armar o acampamento com a ajuda de minha mãe.

Estávamos comendo Condores assados à luz mediana da lua quando senti um arrepio na coluna:

_ Um círculo – murmurei.

_ O que foi querida – perguntou-me minha mãe.

_ Um círculo – respondi-lhe apontando para uma fina linha branca que se desenhava em torno do acampamento.

_ Magia! – exclamou meu pai erguendo-se de um salto, sacando as Katares e tentando sair do círculo a tempo

Minha mãe envolveu-me num manto e ordenou que eu ficasse escondida e partiu para enfrentar o Bruxo que nos atacava. Porém antes de eu poder me afastar uma pesada Nevasca caiu sobre mim prendendo-me num grande bloco de gelo do qual eu não conseguia me livrar.

Tudo o que eu vi desde então foi um pouco embaçado pela camada grossa de gelo que me cobria o rosto e também pelo frio que feria meus olhos.

Minha mãe sacou a Flamberge e empunhou o Escudo Espelhado, mas antes mesmo de ela aproximar-se do Bruxo um jovem Arruaceiro postou-se entre ela e o homem que agora tentava, em vão, conjurar Lanças de Fogo sobre meu pai.

_ O que desejam de nós? – perguntou-lhe minha mãe

_ Queremos suas cabeças, – respondeu o homem – o grande clã Thunders já causou muitos problemas para nossa... Associação em Al De Baran.

_ Associação – repetiu minha mãe.

_ Exatamente, é esta mania de vocês de interferirem em tudo: no comércio, na política e nem mesmo na Guarda Municipal nós podemos nos ver livres de vocês – o homem sacou um Rondel e maneou-o entre os dedos. – Não se pode lucrar com tanta gente chata no caminho, para o bem de nossos negócios, os frutos do clã Thunders precisam ser massacrados. O patriarca e a matriarca já descansam no outro mundo, está na hora de encontrá-los, herdeira.

Ele estreitou os olhos e partiu para atacar minha mãe, mas quando o Rondel aproximou-se ela ergueu alto o escudo refletiu o ataque do Arruaceiro, ele afastou-se alguns passos respirou fundo algumas vezes e voltou a atacá-la. Com um golpe certeiro ele atingiu as correias do escudo fazendo-o cair pesadamente no chão. Apesar de perder o escudo, o Rondel não causava muitos danos em minha mãe por que ela vestia uma Armadura Legionária muito pesada e resistente, porém com outro golpe ele soltou as juntas da armadura e ela tornou-se apenas um monte de placas frouxas de ferro que mais atrapalhavam do que ajudavam.

Mesmo estando então praticamente indefesa, minha mãe não desanimou, com grande perícia conseguiu atingir um Golpe Fulminante no Arruaceiro, que caiu semi-inconsciente no chão. Ela aproximou-se dele para desarmá-lo e poder amarrá-lo, ela sempre fora avessa a matar outras pessoas, porém ele estava bem desperto e assim que ela se aproximou o bastante ele arrancou-lhe o Elmo deixando-a com a cabeça desprotegida.

Foi então que um zunido cortou o ar, e eu sequer vi de onde veio a flecha que atravessou a testa de minha mãe, matando-a num segundo. Ela tombou lentamente, e quando já estava no chão o maldito Arruaceiro ousou chutar-lhe o corpo sem vida. Mesmo estando congelada consegui derramar lágrimas sofridas, tentei cerrar os punhos, mas estava sem sensibilidade nos dedos e minhas mãos ainda estavam presas no gelo.

Meu pai estava escondido, circulando o Bruxo fora do alcance da Chama Reveladora dele; depois de chutar minha mãe algumas vezes, o Arruaceiro escondeu-se também e então conseguiu empurrar meu pai para a Chama do Bruxo. Arruaceiros, Assassinos e até mesmo Gatunos habilidosos conseguem perceber a presença de pessoas escondidas ou quando alguém furta algo; depois de revelado pela magia do Bruxo meu pai ficou sem escapatória senão lutar.

_ Deixe-o comigo – disse o Arruaceiro, ele e meu pai cruzaram lâminas furiosamente e quando o Arruaceiro já estava bastante ferido ele tirou a Máscara Kitsune de meu pai antes de Recuar e esconder-se.

Novamente o zunido e meu pai também caiu morto no chão com o crânio trespassado por uma flecha.

_ Trabalho concluído – disse o Bruxo saindo das sombras assim que o Arruaceiro voltou a revelar-se.

_ Falta um – respondeu o homem girando o Rondel nas mãos.

_ Não falta mais – uma voz feminina fria e distante cortou a noite com outra flecha que atingiu e quebrou o bloco de gelo no qual que estava confinada. A Caçadora saiu de trás de nossa barraca e sorriu ao mirar uma última flecha em mim. – Adeus, garota – a flecha atingiu-me no coração e acho que ele não bateu nem uma única vez mais antes de eu morrer.

Depois de muito tempo eu despertei, estava deitava numa cama macia com o corpo dolorido e um grande curativo no peito. Com dificuldade levantei-me e procurei por alguém, encontrei então uma senhora idosa na sala olhando pela janela o pôr-do-sol.

_ Com licença – aproximei-me dela e ela sorriu ao ver-me – o que aconteceu? Onde estou?

_ Olá garotinha – a senhora levantou-se vagarosamente e foi até mim – que bom que estás sentindo-se bem o bastante para levantar-se.

_ Desculpe-me, eu a conheço? Não reconheço este lugar.

_ Sou Verônica Tenenbaum, muito prazer – ela sorriu. – Meu filho Alex achou-a desmaiada no deserto e a trouxe para cá para que eu cuidasse de ti.

_ Muito obrigada, senhora Verônica.

_ Como é teu nome, pequena?

_ Eu... – hesitei um momento – não consigo recordar-me.

_ É compreensível, passaste os últimos dois dias na cama febril e muito ferida – ela pousou a mão em meu ombro e guiou-me até a cozinha. – Deves comer algo agora, querida. Sente-se e espere um minuto que eu trarei algo para ti.

Verônica começou a cozinhar enquanto eu permaneci sentada, com muitas dores pelo corpo e sentindo uma fome sem tamanho. Logo depois de ela servir-me um prato de sopa de legumes eu ouvi alguém entrando na casa.

_ Mãe, estou de volta – Alex entrou na cozinha e estacou ao ver-me lá. – Acordaste então, que bom – ele sorriu e sentou-se ao meu lado.

Era um jovem muito bonito, vestia uma túnica cor de açafrão e uma armadura de bronze; era um soldado da Guarda Municipal de Morroc.

_ Muito prazer, sou Alexander Tenenbaum – sorriu-me com simpatia e aceitou o prato que a mãe lhe serviu. – E tu, como te chamas?

_ Eu não me recordo – baixei o rosto, envergonhada.

_ Tudo bem, deve ser efeito da insolação...

Jantamos em silêncio, Verônica foi deitar-se logo depois de comermos; Alex e eu cuidamos da louça e depois eu fui tomar banho. Quando tirei o curativo vi uma cicatriz em forma de asterisco em meu peito, sobre o coração e senti, no fundo da alma, a necessidade de alistar-me como Gatuna. Enquanto lavava-me tentava com todas as forças lembrar-me do que havia acontecido, sentia-me triste e solitária, mas não sabia o porquê. Quando saí do banho havia outro soldado da Guarda conversando com Alex na sala.

_ Esta é a garota de que me falaste Alex? – perguntou o homem para Alex

_ Sim, Rick, é ela.

_ Muito prazer, senhorita – o homem apresentou-se – sou Richard Goldcoin, muito prazer.

_ O prazer é meu – olhei-o envergonhada – sinto não poder apresentar-me, pois não sei meu nome.

_ Esqueceste teu nome – Richard pareceu espantado. – É uma tristeza, senhorita, mas há de lembrá-lo em breve. Entretanto, eu vim aqui para conversar contigo, Alex: um casal foi encontrado morto há algumas horas no deserto e não muito longe daqui. Parece que estão lá há alguns dias já.

_ Um casal morto – repetiu Alex – por monstros, ou alguma doença do deserto?

_ Só se uma flecha trespassando-lhes a cabeça for uma doença do deserto.

_ Assassinados! Há quanto tempo não víamos disso aqui, não?

_ Sim... – Richard suspirou – mas isto me parece algo planejado e não uma desavença entre dois grupos de aventureiros que resultou em briga, acho que temos um problema.

Os dois baixaram o rosto com expressão pensativa, então Richard olhou-me com certo interesse e perguntou:

_ Há quanto tempo ela está aqui, Alex?

_ Eu a encontrei há dois dias, mais ou menos, rondando sozinha pelo deserto – ele encarou o colega. – Achas que são os pais dela?

_ Podemos tentar, senhorita, por favor, vista um casaco e venha conosco.

Alex deu-me um casaco muito grande para mim e então eu segui junto deles para a Guarda Municipal. Seguimos até uma sala refrigerada nos fundos da Guarda onde havia uma mesa de pedra fria com dois corpos cobertos com lençóis negros. Richard avançou para a mesa e puxou os lençóis num único movimento. Meu único movimento foi cair de joelhos.

_ Tri... cia Thun... ders...

_ O que? – Alex olhou-me preocupado

_ Meu nome: Tricia Thunders – lágrimas pesadas corriam pelo meu rosto.

_ São teus pais? – perguntou-me Richard

_ Sim, Samantha Thunders e Derick Battlestar – disse-lhes – meus pais.

_ Como isto aconteceu – Richard havia se ajoelhado e olhava-me nos olhos – como eles morreram?

_ Não me lembro – minha visão estava turva de lágrimas, Alex se abaixou e me abraçou fortemente – não sei, eles... morreram e, eu não sei como – apertava a cicatriz no peito com força.

_ Há dois dias recebemos uma mensagem da Guarda de Al De Baran dizendo que Alizza e Renan Thunders haviam sido assassinados.

_ São meus avós – murmurei com a voz abafada pelo ombro de Alex que ainda me apertava em seus braços.

_ Sabe o que isto me parece – perguntou Richard – extermínio!

_ Tens razão... – Alex afastou-me um pouco de si e perguntou-me – Sabes de alguém que tenha desavenças profundas com tua família?

_ Não sei ao certo – funguei e limpei os olhos o melhor que pude – mas lembro-me vagamente de uma Associação de Al De Baran, ou algo assim.

_ Associação, deve ser alguma máfia regional – murmurou Richard. – Tricia, acredito que quem quer que tenha matado teus pais, acha que tu estás morta também. E para tua segurança devem continuar a achar isto, sugiro que mudes de nome e talvez um pouco tua aparência também.

_ Concordo com ele, Tricia, será bem mais seguro para ti que deixes de ser Tricia Thunders e passe a ser outra pessoa.

_ Mas quem eu seria?

Um longo silêncio abateu-se sobre nós, não conseguia erguer os olhos e ver meus pais mortos, sentia-me vazia por dentro e a única coisa que eu sabia ser verdadeira era a vontade que vinha do fundo de minha alma de tornar-me uma Gatuna, mesmo sem saber por quê.

_ Trillian Tenenbaum – disse Alex depois de um longo tempo.

_ Como?

_ A partir de hoje, tu te chamarás Trillian Tenenbaum – ele olhou-me longamente e sorriu por fim. – Quando eu era pequeno minha prima Trillian vinha visitar-me sempre, mas um dia estávamos brincando fora dos muros da cidade e um Lobo do Deserto apareceu e a atacou. Mesmo com muitos cuidados médicos ela faleceu. Tu és muito parecida com ela, Tricia, mas ela tinha cabelos verdes curtos.

_ Então tenho que pintá-los – ele piscou com força e depois sorriu novamente.

Richard, que havia anotado tudo, disse que eu deveria comparecer à Guarda no dia seguinte para pegar minha nova ficha de civil, com meu novo nome e recheada de informações falsas sobre mim.

Alex que eu chegamos em casa tarde, não dissemos palavra durante o caminho inteiro, mas quando eu estava adentrando o quarto que haviam me dado ele pousou a mão em meu ombro e agradeceu-me por aceitar o nome e a estória novos para minha vida. No dia seguinte, logo de manhã cedo, ele acordou-me com o café da manhã em uma bandeja e um sorriso no rosto.

_ Não precisavas fazer isto – censurei-lhe enquanto comíamos.

_ Eu queria fazer isto – respondeu-me ele – é o mínimo que poderia fazer-te hoje.

Verônica estava a par do que havia acontecido na noite anterior, abraçou-me longamente quando me encontrou, disse que sentia muito e que eu poderia ficar tranqüila, pois estava em casa. Ela saiu para visitar algumas amigas, Alex e eu ficamos em casa mais algum tempo e depois fomos ao centro da cidade para comprar algumas roupas e outras coisas para mim.

_ Quando eu a encontrei, tu vestia uma indumentária de Aprendiz – disse Alex – pretende tornar-se uma guerreira?

_ Sim, vou ser uma Gatuna.

_ E depois?

_ Não sei ainda – olhei-o e sorri – mas quando for a hora eu descobrirei.

Depois do meio dia voltamos para casa, com algumas sacolas de compras e muita fome. Preparei o almoço enquanto Alex tomava banho, almoçamos juntos e depois começamos a transformar-me em Trillian Tenenbaum. Fomos à varanda onde ele colocou uma cadeira na qual eu me sentei. Amarramos um lençol velho ao redor de meu pescoço e então ele começou a pintar meus cabelos de verde, iguais aos cabelos da verdadeira Trillian Tenenbaum. A tintura exalava um cheiro forte e enjoativo, eu tinha que segurar as mechas para cima enquanto ele passava a pasta nas raízes. A tinta fazia a pele arder e coçar muito e eu tive que ficar quase uma hora com ela nos cabelos.

Depois desse tempo Alex trouxe uma grande bacia cheia d´água onde eu pude tirar a tinta do cabelo, depois de limpos bastaram alguns minutos sob o sol de Morroc para que eles secassem.

_ Então – perguntei a ele quando meu cabelo terminou de secar – estou parecida com tua prima?

_ Muito – ele sorriu – sente-se aqui agora para eu poder cortar teu cabelo um pouco.

Sentei-me novamente na cadeira e ele cortou-me o cabelo do mesmo jeito que Trillian cortava, ao fim da operação eu não me reconheceria se passasse por mim de relance e ficamos orgulhosos disso. Depois fomos à Guarda onde Richard providenciou-me a nova ficha de civil e outros documentos que eu admito ter perdido algum tempo depois.

Vivi com Alex e Verônica durante cerca de dois anos, até Alex ser convocado para a Guarda de Payon. No dia em que me tornei Gatuna foi ao lado deles que comemorei, e foi também junto dele que eu assinei meu primeiro carimbo de uma Guarda Municipal em minha ficha de civil. Senti como se tivesse perdido minha família novamente naquele dia cinzento no qual eles foram embora, e por algum motivo qualquer nunca mais nos falamos. Na vez em que fui a Payon julguei ver Alex de relance, com a túnica verde e armadura de prata da Guarda de Payon, mas não fui atrás dele.

Depois de eles saírem de Morroc, morei alguns tempos por lá, depois fui à Al De Baran onde treinei na Fábrica de Brinquedos e onde quase morri congelada no caminho para Lutie. Morei algum tempo em Izlude e alguns meses em Alberta, porém era em Morroc que eu me sentia viva. Onde eu sabia que minha farda de Gatuna era respeitada e temida e sabia, pelos meus pesadelos, que era lá que eu devia ficar, pois era onde eu me sentia próxima aos meus pais.

Entretanto, devo ressaltar que, naquele tempo, eu ainda não me lembrava de como meus pais e eu havíamos morrido, o trauma da morte ainda bloqueava a lembrança tal qual ela é, o que eu via à noite era uma confusão de imagens e gritos que chegavam a mim através de uma grossa camada de gelo. Foi numa de minhas estadias em Morroc que eu conheci Anji e Juhz e me tornei amiga delas, e por causa disso o destino pôs à minha frente aquele Arruaceiro que trouxe a lembrança de minha morte de volta.

_ Quanta ironia... – os lábios de Jack curvaram-se num sorriso maldoso – queres matar aqueles que te mataram.

_ Parece-me bastante lógico – disse-lhe Juhz. – Tu também deves nutrir raiva daqueles que te mataram.

_ Minhas mortes foram causadas por mim mesmo, senhorita Juhz.

_ Como assim?

_ O que tu faria se teu melhor amigo permanecesse um jovem quando todos à tua volta já estão curvados sob o peso dos anos? – ele a encarou longamente – Não se pode ser imortal, minha cara, sempre que eu sentia que estava longevo de mais, forjava minha morte a fim de poder iniciar outra existência em outro lugar.

_ Tens razão – murmurou Juhz, baixando os olhos. – Mas como alguém tão cheio de vida aceitou vir para este santuário de onde não pode tirar os pés?

_ Era meu destino vir para cá – ele suspirou – quando eu era jovem, ainda na minha primeira vida, eu estava treinando neste lugar quando Odin trouxe este Tabuleiro para cá.

_ Viste o senhor dos deuses com teus próprios olhos! – exclamou Juhz

_ Vi, ele falou comigo, tocou-me e me mostrou meu destino.

Ele era um Sábio, inteligente e forte, mestre de um Clã em franca expansão, dono de algumas terras onde se plantava cevada e herdeiro de muito dinheiro. Gostava do calor de Magma e por isso treinava diariamente lá, e nunca se feria muito, mas um dia algo saiu errado.

Por descuido, acidente, ou obra do destino; uma grande coluna de pedra ruiu com o impacto de uma das magias invocadas por ele, e caiu sobre seu corpo, ferindo-o mortalmente. Ele teria morrido, se isto lhe fosse possível. Com toda a força que conseguiu reunir naquele momento ele arrastou-se para dentro de uma fenda nas paredes de pedra e ficou estirado sobre o chão quente até sentir sua consciência esvair-se de sua mente. Quando acordou, logo teve vontade de voltar a desmaiar, pois estava sendo firmemente encarado por um poderoso par de olhos. Olhos de Odin.

_ Quem és tu, humano? – perguntou-lhe em voz retumbante o senhor de Asgard

_ S... ou Jack Sevenfold, meu senhor – respondeu o homem, apavorado.

_ E de onde tu vens?

_ De Juno, meu senhor.

_ Porque mentes para mim, humano? – Odin ergueu-o pelas golas chamuscadas de sua capa de Sábio – Deverias ter a decência de revelar-me tua ascendência, não o reconheço como uma de minhas peças.

_ Não estou lhe mentindo, meu senhor, como toda minha família, sou nascido em Juno.

O grande deus o encarou longos minutos e colocou-o no chão novamente.

_ Olhando em teus olhos, eu posso ver que falas a verdade, porém eu não entendo como podes viver sem estar em meu Tabuleiro – Odin fitou as paredes do lugar longamente. – Vejo no fundo de tua alma que morreste há pouco tempo: quando se morre uma marca fica no fundo da íris e eu vejo que não faz muito tempo tu deveria ter sido levado pelas Valkyrias.

_ Não entendo, meu senhor.

_ Talvez uma oportuna dobra da manta do destino tenha te trazido aqui hoje, humano – disse o deus. – Vejo que tua alma é completa, e isto significa que ela tem uma natureza peculiar, podes dizer por quê?

_ Não sei responder-te, meu senhor.

_ Quando nasceste, algo especial aconteceu?

_ Quando nasci... – o homem pensou um pouco – Minha mãe faleceu ao dar-me à luz – respondeu por fim – seria isto algo especial?

_ Precisamente – o senhor dos deuses encarou o Sábio novamente, e ele encolheu-se sob seu olhar. – Fica ao meu lado agora e escuta com atenção, porque eu não hei de repetir uma só palavra.

O homem ergueu o rosto e postou-se ao lado do deus. Odin tomou-lhe uma das mãos nas suas e tirou-lhe um fio de sangue apenas com o olhar, um gemido morreu nos lábios do Sábio. Odin esfregou o sangue do homem no chão e em seguida jogou uma gota de seu próprio sangue divino, então algo semelhante a uma semente surgiu. O deus esmagou-a sob seus poderosos pés e ouviu-se um estalo.

Quando ele se afastou começou a brotar uma nascente de elunium que cresceu até formar uma pequena plataforma, sobre a plataforma formaram-se montes de zargônio e garleta que aos poucos tomaram a forma das construções e monstros de toda Midgard e pequenas pessoinhas de oridecon e emperium surgiram nas ruas e dentro das construções de garleta.

_ Este é teu Tabuleiro! – anunciou Odin ao humano – Há alguns anos a tarefa divina de observar a humanidade tornou-se algo quase insuportável, então sob meu comando os deuses criaram o Tabuleiro Mestre, onde podíamos ver toda a humanidade sem maiores complicações. Antes disso tínhamos que descer à terra para cuidar de vocês. Naquele tempo classificávamos a humanidade como os de alma natural e os de alma primordial, ou seja, aqueles que tinham nascido sob circunstâncias normais e aqueles que tiveram um nascimento que influenciou a formação da alma, deixando-a muito mais forte e pura. Achávamos que toda a humanidade estava em nossos Tabuleiros, mas agora vejo que quem tem alma primordial não está. Isto lhes confere uma espécie de imortalidade, que é o preço por serem invisíveis. Não olhamos mais para o mundo em si mesmo e sim o observamos por meio dos Tabuleiros e, por não estarem presentes neles, os que são como tu são invisíveis aos nossos olhos. Antes, quando alguém de alma primordial morria, as Valkyrias viam e o buscavam, mas como aconteceu a ti antes de minha chegada: morreste e não foste carregado ao Valhalla, elas não viram tua morte. Compreendes?

_ Sim, meu senhor – os olhos do homem exibiam um misto de prazer e medo.

_ A partir de hoje, tu será o Observador deste Tabuleiro, não sairás daqui até que teu herdeiro surja.

_ Meu herdeiro?

_ Sim, tu ficará ilhado neste salão para toda a eternidade, um dia hás de te cansar e quererá morrer e então teu herdeiro virá para tomar teu lugar aqui.

_ Não poderei mais sair deste salão!?

_ Não, serás um guia para os que são como tu – respondeu o grande deus – garantirei que aqueles que têm alma primordial saibam deste lugar e venham a ti para orientar-se.

_ Mas, meu senhor, como poderei ficar aqui para sempre? Tenho uma vida a viver.

_ Tens uma existência a cumprir, e são coisas diferentes. Este é teu Tabuleiro e deves cuidar dele, se quiseres saia daqui agora mesmo e não olhe para trás e tu poderá viver lá fora. Mas teu destino foi traçado assim que me encontraste neste salão, voltarás para cá assim que for momento e então não sairás mais.

_ É este meu destino?

_ É o destino que eu lhe imponho agora – o senhor de Asgard arrancou a frente das roupas chamuscadas do homem com um simples movimento e cravou-lhe a mão palmada no peito deixando uma marca em forma de olho na pele clara.

Ao terminar de marcá-lo Odin deixou que ele corresse com todo o ímpeto para longe daquele lugar, o Olho em seu peito o ligaria ao Tabuleiro até o dia em que ele passaria aquela tarefa a outro imortal.

O Tabuleiro estava terminando de criar vida quando Odin terminou de gravar nas paredes as runas que prenderiam Jack naquele salão quando fosse o momento. Depois de terminar de criar o Salão o grande senhor dos deuses retornou a Asgard e contou aos seus subordinados sobre a peculiaridade dos humanos que possuíam alma primordial. Apesar de um tanto embasbacados, os deuses não se deixaram preocupar pelo fato. Escreveram então uma lenda para guiar os imortais ao Tabuleiro para que descobrissem a verdade sobre si mesmos e plantaram-na na mente de um escritor que a transcreveu e publicou. Assim eles voltaram sua atenção ao Tabuleiro Mestre e voltaram às apostas...

O Sábio Jack Sevenfold correu tanto quanto pôde, até estar bem longe do Salão, em seu peito uma marca em forma de olho queimava e reluzia e em seu coração brilhava o medo e o júbilo. Ele era um imortal, mas estava fadado a um destino que o próprio Odin dissera que o levaria a querer morrer.

Então ele viveu quatro vezes, e em cada nova vida mais pronunciada e dolorida tornava-se a marca em seu peito. Chegou então o momento em que aquilo o consumia a ponto de ele perder a vontade de viver, assim ele se despediu de sua quarta esposa e de sua quarta vida e voltou à Caverna de Magma em Juno, onde Odin o esperava.

_ Sabias até quando eu voltaria, meu senhor? – perguntou ao deus

_ Senti que o Olho aproximava-se do Tabuleiro e vim para recebê-lo.

_ Sinto-me honrado, meu senhor.

_ Vim para dizer-lhe que um dia teu herdeiro virá tu saberás quem será, pois na noite em que ele nascer teu Olho o verá e então ele aparecerá em teus sonhos – o grande deus o olhava fixamente. – Quando for o momento ele virá a ti, então não deves preocupar-se com isso; ele virá e receberá o Olho quando viver ultrapassar a barreira do insuportável para ti. Então ele deverá sacrificar-te com isto – ele entregou a Faca Inversa ao Observador – com esta Faca tua alma será reduzida a nada, não irás para o Valhalla ou para Niffleheim, apenas deixarás de existir como se jamais tiveste posto os pés nesta terra.

Ele segurou a Faca com as duas mãos, o Olho ardeu com mais intensidade quando ele tocou o cabo de metal brilhante.

_ As inscrições nas paredes impedir-te-ão de sair daqui, elas prendem o portador do Olho neste Salão; teu herdeiro ficará preso aqui quando recebê-lo de ti, mas ele só aceitará o novo hospedeiro se ele o aceitar, então não poderás prender alguém aqui na ignorância da verdade, estás de acordo?

_ Perfeitamente, meu senhor.

_ Este Tabuleiro foi criado com teu sangue, é como uma parte de ti; deves observá-lo e cuidar da vida neste plano. Hás de guiar os imortais que vierem a ti e os mortais que precisarem de teu auxilio também.

_ Estou pronto para servir quem vier a mim, meu senhor – Jack encheu o peito e soltou o ar aos poucos. – O Observador está em seu posto.

_ E assim ficará até o fim de tua imortalidade – disse Odin, o grande deus então retornou a Asgard e deixou o homem no Salão onde ele permaneceu intocado pelos anos, observando o contínuo fluxo do tempo. Muitas pessoas foram até ele, e ele simpatizou com várias delas, mas por mais que desejasse tê-las ali de novo, as runas impediam que os mortais entrassem duas vezes no Salão e os imortais nunca voltavam por vontade própria.

Diversas vezes ele esfaqueou-se com a Faca Inversa sem nunca morrer e diversas vezes ele perdeu a esperança do nascimento de seu herdeiro; mas um dia uma mulher de cabelos muito negros apareceu num sonho e deu à luz uma menina morena de olhos verdes que passou a visitá-lo constantemente em seus sonhos.

Mais de oitocentos anos haviam se passado desde que ele se tornara Observador, mais de mil anos depois de ele ter nascido; veio ao mundo Tricia Thunders e dezessete anos depois de ele a ver pela primeira vez ela foi visitá-lo no Salão e descobriu a verdade sobre si mesma e conheceu o destino que lhe era reservado.

_ Mas então, irás ajudá-la? – perguntou Juhz a Jack

_ Sim, podes dizer-me os nomes de teus assassinos, Tricia?

Hesitei um momento "eu não sei seus nomes" – respondi-lhe.

_ Isso dificulta muito as coisas – Jack suspirou, foi até o trono de prata e sentou-se majestosamente nele – mas não há de torná-las impossíveis. Venha aqui, Tricia.

Fui até o trono e pousei minha mão sobre a mão palmada dele, ele a apertou com força e sacou a Faca Inversa da bainha. Engoli em seco, mas ele apenas fez um pequeno corte para tirar-me um fio de sangue. Ele sorriu com doçura e levou minha mão até seu rosto, fechou os olhos e limpou o sangue sobre as pálpebras cerradas.

Permaneceu um minuto com os olhos fechados, quando os abriu não eram os tristes olhos azuis quase pretos e sim profundos olhos verdes, exatamente iguais aos meus. Ele olhou-me nos olhos e uma força incontrolável manteve meu olhar preso no dele, seu corpo sentado no trono sofria alguns espasmos e um suor frio descia-lhe pelo rosto.

Então uma força igualmente potente expulsou-me de perto dele, cai alguns metros adiante e Juhz amparou-me prontamente evitando que eu batesse a cabeça no chão.

_ O que aconteceu? – perguntou-lhe Juhz, assustada

_ Eu entrei na lembrança dela – cambaleante, ele levantou-se e respirou fundo antes de aproximar-se do Tabuleiro – como ela não pode informar-me os nomes de seus assassinos, terei de buscá-los pelas feições...

Sentei-me no chão com a cabeça latejando, Juhz foi até o Tabuleiro observar o que Jack estava fazendo, ela anotava tudo numa caderneta. Ele pousou a mão sobre a elunium que compunha a base do Tabuleiro e então, uma por uma, todas as pequenas pessoinhas reluziram. Quando uma peça brilhava, ele via quem exatamente esta pessoa era, e ficou muitos minutos parado, com a mão tremendo sobre a elunium até se afastar com um sorriso trêmulo.

_ Daniel Ookami – murmurou ele, respirando com dificuldade caminhando até onde eu estava – este é o nome do Bruxo que emboscou a ti e teus pais.

_ Daniel Ookami – repeti sentindo o ódio impregnando aquele nome – e o Arruaceiro, ou a Caçadora?

_ Achar uma pessoa pessoalmente é muito, muito cansativo minha cara – ele pousou delicadamente a mão em meu rosto. – Preciso muito descançar antes de procurar pelos outros, peço-lhe um pouco de compreensão.

_ Eu compreendo, é claro – afastei a mão dele do meu rosto e segurei-a firme entre as minhas. – Podes descançar à vontade, apenas me informe onde posso encontrar Daniel Ookami.

_ Ele vive em Al De Baran, dá aulas de magia a jovens Magos em sua casa – ele parou um momento – deves perguntar por ele no centro da cidade.

_ Muito obrigada, Jack – levantei-me de um salto e o acompanhei até sua câmara atrás da reentrância do trono, onde havia uma cama de dossel com lençóis muito brancos. – Nem sei como agradecê-lo por isso.

_ Cumpre tua sina e volta para mim depois e eu já estarei satisfeito – respondeu-me ele tirando o pesado manto negro que usava e indo dentar-se na cama de lençóis brancos.

Voltei para perto do Tabuleiro e encontrei Juhz ainda fascinada pelo artefato, quando percebeu minha aproximação ela olhou-me com olhos tristes.

_ O que houve – perguntei-lhe – achei que estavas feliz por estar aqui.

_ Estou, Trill... Tricia – respondeu-me ela – mas é que tudo foi muito confuso; eu tinha muita fé de este lugar ser verdadeiro, mas agora que estou aqui sinto falta de algo...

_ Podes chamar-me de Tril, Juhz – aproximei-me dela e tomei suas mãos nas minhas com força – ainda sou Trillian Tenenbaum, sou desde que Alex transformou-me nela, e de qualquer forma é apenas um nome, ainda sou a mesma pessoa.

_ Eu sei, Tril – ela baixou os olhos – mas, antes você era uma pessoa normal, agora eu sei que és uma imortal, uma... vingadora, não sei o que pensar.

_ Não precisas mudar teus pensamentos a meu respeito, já lhe disse: sou a mesma pessoa!

_ Tens certeza?

_ Mais do que absoluta – ela sorriu-me e soltou minhas mãos. – Mas acho que não é apenas isso...

_ Meu pai – disse-me então com voz embargada – sinto que ele deveria estar aqui.

_ Porque não vais atrás dele?

_ Ir atrás dele? Mas eu não sei onde ele está.

_ Mas ele – apontei o Tabuleiro – sabe.

Ela fixou o olhar no Tabuleiro durante alguns segundos, depois me olhou temerosa.

_ Jack foi descançar, como poderíamos usar isto sem ele?

_ Eu não sei... – respondi-lhe – mas eu sou a herdeira dele, isto deve obedecer-me também.

_ Não Tril – estendi a mão para tocar o Tabuleiro no ponto em que Jack o havia tocado para achar Daniel Ookami, mas Juhz segurou-me o pulso antes de eu tocar a elunium do grande mapa vivo à nossa frente – aquele que não é o Observador não pode tocar o Tabuleiro, nem mesmo o herdeiro. Tu podes morrer!

_ Juhz, sou imortal...

_ Este Tabuleiro é criação de Odin, acredite-me, ele pode matá-la...

_ Então não há nada que possamos fazer – bocejei e estiquei os braços estalando os ossos da coluna – talvez devêssemos descançar um pouco também...

Juhz concordou com a cabeça e deitamo-nos juntas no chão quente do Salão, permaneci longos minutos fitando o teto antes de pegar no sono. Então eu sonhei: a imagem de Daniel Ookami rindo-se de mim diante de meus olhos, apertei a mão com força, a ponto de tirar-me um pouco de sangue.

_ Hás de pagar pelo que me fizeste – murmurei em meio ao sono.

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